#FILME - #OPOÇO
- Barbie Antropóloga
- 19 de mar. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 8 de abr. de 2020
O filme espanhol que possui direção de Galder Gaztelu-Urrutia e roteiro Pedro Rivero e David Desola vem fazendo sucesso na Netflix por seu terror politico bem aplicado.

Estava eu rolando o catalogo da Netflix quando me deparei com a indicação do filme O Poço. Como gosto de um terror dei uma chance esperando monstros, possessões e vampiros, enfim, o tradicional do gênero. Mas não foi o que encontrei.
Mas é de terror? Com certeza; e sinceramente o pior tipo de terror que existe, o terror social, político, econômico, mais próximo da vida real possível. Ah e sim, tem muito sangue, morte e até canibalismo, mas o pilar do terror nesse filme é outra coisa: Estratificação social!
O filme espanhol que possui direção de Galder Gaztelu-Urrutia e roteiro Pedro Rivero e David Desola recebeu o prêmio de melhores efeitos especiais no Goya Awards, “Oscar” espanhol.
Resumo
“Existem três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”.”

A historia começa quando Goreng (Ivan Massagué) acorda no nível 48 de uma prisão vertical, junto com seu companheiro de cela Trimagasi (Zorion Eguileor) e de cara ele já percebe que há algo errado, óbvio.
O poço é um prédio com vários andares, cada andar com duas pessoas. Os personagens não sabem ao certo quantos andares o local possui e isso faz parte da angústia não só para eles como para nós. Cada andar é uma espécie de cela com o número do nível em destaque em uma das paredes. Em formato quadrado, com um aspecto minimalista e tecnológico, o espaço possui um buraco quadrado no meio que permite a comunicação entre os andares.

Porque um vão no meio? Foi a primeira pergunta que me fiz. De início acreditei que era para forçar as pessoas a se jogarem, depois cogitei que fosse para que se comunicassem, mas o buraco é uma personagem muito importante do filme, como uma entidade, ele é o próprio terror, pois se imagine numa prisão onde a porta fica constantemente aberta, por onde qualquer um pode entrar, qualquer um portando qualquer coisa, afinal de contas cada pessoa tem direito a escolha de um objeto. Você conseguiria dormir num lugar como esse? Pra mim seria impossível.

Todo dia, através desse buraco uma plataforma do tamanho exato do vão desce até o fundo do poço, como uma mesa com um banquete do melhor que existe em comidas, não só o melhor, mas das comidas preferidas de cada participante daquele sistema. O banquete inicia perfeito e impecável e ao longo do seu trajeto em direção ao fundo as comidas vão acabado.
A "mesa" que no inicio está impecável chega ao andar de Goreng em estado de calamidade. É perturbador perceber que a comida que você comerá foi pisada, cuspida, dentre outras possibilidade que nem queremos imaginar. Cada andar tem dois minutos para comer, você não é obrigado, mas não pode guardar para depois, pois a cela possui um mecanismo que o força a devolver a comida para a plataforma.
O filme não explica o motivo exato pelos quais todos os personagens estão naquele poço. O personagem principal inicia sua jornada na tentativa de curar um vício. E há um brecha para interpretar que as entradas são voluntárias e que se trata de um experimento social, esse último não com tanta clareza.
No poço não entram menores de idade e você pode levar qualquer objeto (como ja foi dito), inclusive arma, ou mesmo seu pet, que é o caso de uma das personagens. Isso me fez refletir muito se eu levaria a Pixel (minha gata) para um lugar daquele, tendo em vista que Pixel não é um objeto para mim e eu não teria coragem de condená-la a esse tipo de experiência, onde o único objetivo é a sobrevivência.
Relações com teorias
“Se todos comessem apenas o que precisam, a comida chegaria ao nível mais baixo.”
Karl Marx
Para Marx as desigualdades sociais são apenas um traço econômico da relação entre burgueses e proletários (Patrões e funcionários). O patrão é o dono do meio de produção e o funcionário é dono da força de trabalho.
O desequilíbrio acontece quando o valor pago pela força de trabalho de um funcionário é desproporcional ao que ela vale e ao valor de mercado. Ou seja, esse funcionário não conseguirá gastar seu salario nos mesmos lugares que seu patrão, ou com as mesmas coisas que este. O que impossibilita o crescimento social desse funcionário.
Max Weber
Weber acredita a questão econômica não é a unica responsável por esse desequilíbrio, mas um somatório quem vão de economia a cultura, passando pela politica permitindo que uma pessoa sem dinheiro possa obter prestigio, ou que existam varias camadas de desigualdade.
Aplicando ao filme:
Os funcionários da cozinha ou da administração do poço são os burgueses. São eles quem decidem o que desce na plataforma, quantas pessoas há no poço e em quais andares elas acordarão.
Todas as pessoas dentro do poço são os trabalhadores, que ainda que acreditem terem algum controle sobre o que virá a seguir, nós, os espectadores dessa historia percebemos que há uma enorme limitação sobre o quanto se pode escolher dentro deste lugar. Até mesmo dentro da cozinha e da administração há diferenças hierárquicas de decisão e conhecimento.
Solidariedade espontânea
Solidariedade espontânea é um termo usado pelo filme, explicando uma provável intenção da experiencia. Alguns dos confinados acreditam que o estado de caos crie um espirito de empatia onde cada um comerá apenas o que precisa, protegendo os outros o que fará com que todos comam. Mas o que vemos é justamente o contrario. Quem está acima não se preocupa com os de baixo. Criando uma ideia de que há um privilégio sobre os demais, se esquecendo que num outro momento a situação seja invertida;
Meritocracia
Baharat e Miharu me fizeram refletir sobre o discurso da meritocracia. Baharat tenta e consegue subir de nível utilizando uma corda, enquanto que Miharu tenta a todo custo descer e utiliza a estrutura do próprio poço, a plataforma, para isso. Em ambos os casos eles são a exceção e ainda que consigam mudar de nível essa condição nunca é permanente, sem contar dos riscos a que são expostos. Há uma falsa ideia de que a transição de nível é fácil e está disponível a todos, mas como disse é falsa.
Outra reflexão sobre a meritocracia está sobre os prisioneiros não terem direito de escolha e a incerteza de em qual nível você acordará em cada novo ciclo. Alguns podem argumentar sobre planejamento de vida, sobre escolhas, mas esse mecanismo não diz sobre o controle macro e o controle micro no seu desenvolvimento social. Se você analisar bem, Goreng de certa forma tem acesso a algumas escolhas, como por exemplo, ler seu livro, ter um bom relacionamento com Trimagasi, comer ou não comer. Há coisas que estão sob o controle de Goreng e outras não. Isso nos dá uma comparação de como a nossa sociedade tem uma falsa ideia de construção do próprio destino. Há coisas eque estão sob a nossa decisão e outras que já mais poderemos escolher.
Também é importante perceber que ainda que em situação de caos seja comum a todos estar no nível superior representa um "gole" de privilégio. Embora os que estão nos andares mais altos acreditem possuir as mesmas condições (estamos todos no mesmo barco) ignorando suas vantagens. E isso serve para o poço, para a sociedade brasileira, para qualquer aplicação.
O que é aceito?
O idealismo e o realismo são confrontados a todo momento. Quando conhecemos o personagem principal Goreng e seu colega de cela Trimagasi estão em posições opostas. Um é idealista e o outro é o realista. Já num outro momento Imoguiri assume o papel de idealista enquanto Goreng assume o realista da vez. Isso pode ser observado pelos objetos escolhidos por ambos. Goreng escolhe um livro, Don Quixote, que a proposito, tem muita relação com a discussão proposta no filme e Imoguiri leva seu cachorro. Já Trimagasi escolhe uma faca com alto poder cortante.
Será que seria apropriado levar um cachorro para uma prisão? Ou uma faca? Ou mesmo um livro? E matar é certo? Comer resto é bom? Comer tudo é louvável? Andar por cima da mesa é algo aceitável? Qual é o limite da condição humana? A fome? O que é moralmente aceito quando se está com fome?
O senso de moralidade é questionado o tempo todo, em cada fala ou atitude de todos os personagens. Na verdade esse senso moral ele rompe a quarta parede e te faz questionar o que você faria naquele lugar.
Afinal o que é moral? Segundo o filoso Friedrich Nietzsche "Não há fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral de fenômenos..." parece que esse pensamento reflete bem a situação de O Poço onde talvez as circunstancias deem cota de justificar as consequências.
Reflita
Que preço estamos dispostos a pagar por uma mudança em nossa vida?
Qual é a pena valida?
Estamos realmente conscientes do sistema em que estamos vivendo?
Temos clareza sobre a nossa administração social?
Temos poder de mudar um traço social?
Os sistema realmente funciona de forma igual a todos?
O sistema funciona?
Todas as pessoas dispõem da mesma condição?
Ascensão social é para os mais fortes?
Todas as pessoas na sua sociedade possuem o mesmo senso de moralidade?
Todos estamos no mesmo nível?
Todos comeríamos ou comemos somente o suficiente?
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